Diário de um Legendário, dia 3: retiro masculino vira 'reality show' com suor, lama e teste final de coragem

  • 28/07/2025
(Foto: Reprodução)
Diário de um legendário, dia 3: suor, lama e teste final de coragem A frase foi dita no momento mais físico e tenso do terceiro dia da minha subida à montanha com os Legendários — o retiro masculino e cristão que ganhou fama nas redes sociais. Quem leu os dois primeiros dias deste diário conhece o objetivo: eu, homem cristão que cresceu em lar evangélico e com interesse no assunto, subi a montanha para entender o que acontece, afinal, entre os Legendários. Se no primeiro dia o cansaço físico e a disciplina militar deram o tom da experiência, e no segundo foram as emoções à flor da pele em torno das relações familiares, o terceiro dia teve clima de prova de reality show. Momentos de emoção, como um batismo no rio e conversas francas em "família" (nome dos subgrupos em que os homens são divididos), foram sucedidos por desafios físicos que culminaram em transformar o retiro em uma verdadeira arena, onde a coragem e a resistência foram postas à prova. O g1 publica este Diário de um Legendário em quatro partes diárias, entre sábado (26) e terça-feira (29). Não levei gravador, câmera, nem celular, que eram banidos. Mas tomei notas, que baseiam as ilustrações da equipe de arte do g1. E o que relato aqui é o que vi, ouvi e vivi durante o retiro. 'É a minha merda' O sábado nasceu nublado, menos frio que a sexta. Saímos das barracas sob ordens e, como nos dois primeiros dias, recebemos o comando de nos alinharmos em batalhão, líderes com bandeiras na frente, no mesmo descampado onde havíamos dormido. Alguns legendários de laranja aguardavam para falar --nós, os participantes, ainda não tínhamos nos graduado nem ganhado a "farda" laranja e éramos chamados de "senderistas". Uma das falas veio de forma um tanto quanto gráfica. Um legendário ergueu um saco plástico transparente com um conteúdo marrom e roliço no fundo. Era a introdução para trazer a lição de que um homem de verdade é “responsável pelas próprias merdas”, que um legendário cuida para se encarregar das consequências de suas ações. Arco-íris O tempo foi se abrindo e um imenso arco-íris se formou no céu, à esquerda dos senderistas, que foram percebendo aos poucos o desenho no alto. O contraste foi ficando cada vez mais forte, em uma daquelas cenas que podem encher de magia o imaginário de um cristão. No livro de Gênesis, o primeiro da Bíblia, é dito que Deus criou o primeiro arco-íris logo após o dilúvio, na história da arca de Noé. E fez isso como sinal de sua aliança com a humanidade, prometendo nunca mais castigar a Terra com um dilúvio como aquele. Primeiro 'banho', batismo e novos cristãos Recebemos com festa a notícia de que, pras atividades do dia, precisaríamos levar só uma mochila por família (nome dado aos grupos em que fomos subdivididos desde o início). Após uma breve caminhada, chegamos a uma pequena represa. Ordenaram que ficássemos despidos da cintura pra cima, mantendo as botas calçadas. Entramos na água e ficamos cobertos acima da linha do umbigo; o frio da água era intenso, mas o desconforto não era nada comparado à alegria de "tomar um banho” pela primeira vez em três dias. A orientação então foi que pensássemos no que queríamos deixar para trás a partir daquele momento, coisas que faziam parte do homem de antes e que não levaríamos em nosso retorno como legendários. Daí foram sete mergulhos com essas coisas em mente, sendo contados em coro cada vez que voltávamos à tona. Depois, com as calças e botas molhados, caminhamos mais um pouco e chegamos diante de um poço alimentado por um fio d’água vindo da direção da barragem, que descia por uma superfície rochosa. Era o momento do batismo. Dois senderistas levantaram as mãos quando um legendário perguntou se alguém ali gostaria de aceitar Jesus e se batizar pela primeira vez. Os demais, já batizados, pudemos fazer uma espécie de batismo de renovação. Assim como a noite anterior, foi um momento de comoção para diversos homens ali. O ato verbal de “aceitar Jesus” é natural do meio evangélico e significa se converter àquela fé após reconhecer Jesus Cristo como senhor e salvador de sua vida. É sempre visto como um momento importante na igreja, muito celebrado. No Catolicismo, por exemplo, o entendimento da aceitação é diferente e mais ligado aos sacramentos (batismo, primeira comunhão e crisma). Isso não limita o Legendários a um movimento estritamente evangélico. Conheci dois ou três homens católicos no retiro, entre senderistas e legendários. A predominância de evangélicos, no entanto, é evidente. O fundador, Chepe Putzu, explicou em entrevista ao g1 que se trata de um movimento cristão não ligado a nenhuma denominação ou igreja específica. Tentados como Jesus no deserto O dia de trilha bem mais leve também foi permeado por algumas micropalestras. Numa dessas, um legendário nos aguardava sobre um piso de rochedos, à sombra das árvores, e pediu que ocupássemos o espaço ao redor dele em meia lua. De forma quase teatral, diferente do tom militar de outras falas, ele nos parabenizou por chegarmos até ali, disse que agora já tínhamos conquistado muita coisa, mas que ele tinha algo especial a nos oferecer. Era um saco extra de comida, igual aos que ganhamos no início do retiro (que deveriam durar três dias, sem fartura, e já estavam no fim). Qualquer um de nós poderia ganhá-lo, ele disse. Bastava ir à frente, se ajoelhar diante do legendário e adorá-lo. Qualquer cristão com mais bagagem imediatamente entende que havia ali uma referência a Jesus no deserto, e que a postura correta é recusar a oferta. A Bíblia narra que Jesus passou 40 dias jejuando no deserto após ser batizado por João Batista, e lá foi tentado três vezes por Satanás -- uma delas usando a fome. Assim como o legendário, tudo que o diabo pedia era que fosse adorado. Fomos parabenizados pela escolha de recusar a tentação e orientados a seguir. O lamaçal e a disputa Depois de uma longa pausa para almoço e confraternização com o grupo todo, continuamos a caminhada. Paramos num local e nos sentamos para conversar, dessa vez só entre família, cada um sendo estimulado pelo líder (sob orientação de um legendário) a falar sobre questões pessoais que esperavam curar com a ajuda do retiro. Então, mais caminhada até chegar a... um lamaçal. Era o fim da tarde, e se o dia vinha um tanto quanto leve até ali, era a hora do último grande choque no sentido oposto. Para mim, o maior deles. Tivemos que nos despir de novo da cintura pra cima, dessa vez tirando também qualquer acessório como correntes e óculos, e entramos na água barrenta. Devia ter entre um e dois palmos de profundidade nos pontos mais fundos. Sentamos em círculos na lama, organizados por família, bem próximas umas das outras. O "Voice" (legendário com a principal voz de comando) indicava atividades, que foram desde se deitar na lama até eleger o membro mais fraco da família, colocá-lo no centro do círculo e empurrá-lo com força, um irmão por vez, com a intenção de derrubá-lo. Alinhados ombro a ombro, os outros deveriam ampará-lo sem usar os braços, evitando que ele caísse. Corta para o início da noite com todos de joelhos na lama, alinhados em filas por família, sete fileiras de um lado imediatamente de frente para as outras sete do outro. As únicas fontes de luz eram as várias lanternas nas cabeças dos legendários, emparedados quase ombro a ombro ao redor do lamaçal. Um legendário servia de juiz para cada fileira de lutas. Os dois senderistas à frente deveriam tentar derrubar um ao outro, encostando apenas no tronco ou nas mãos do adversário. Qualquer movimento que resvalasse no pescoço ou no rosto, por exemplo, era motivo de eliminação. Os irmãos logo atrás podiam ajudar sustentando ou empurrando as costas daquele à sua frente. Eliminados eram encaminhados para o fundo e não voltavam à batalha. Famílias inteiras foram sendo eliminadas; as que sobravam vencedoras foram se enfrentando também, até ficar apenas uma família de cada lado na disputa. Sob o comando de legendários, os que estavam de fora se aglomeraram em círculo ao redor e passaram a torcer pela família que representava seu lado inicial das batalhas. Do lado de cá, os homens desanimados foram incentivados por legendários a bater palmas e reconhecer a derrota, e na sequência a gritar em coro por revanche. O Voice concordou e ordenou que todos se reorganizassem de joelhos para outra rodada. Mas, quando ele estava prestes a dar o comando para a nova batalha, outro legendário do lado oposto da “arena” ergueu a mão e a voz, tomando a palavra para enfim passar a lição daquilo tudo. Perguntou por que estávamos lutando entre irmãos e disse que não havia sentido em batalhar contra nossos iguais. E reforçou que as batalhas a serem travadas por homens de verdade são contra inimigos na vida lá fora, no sentido de batalha espiritual. A consagração dos legendários Encharcados de lama e sob o vento frio da noite, esperamos um bom tempo agrupados perto do lamaçal até que um legendário se levantou para falar sobre o sacrifício de Jesus na cruz — não uma morte simples, mas uma tortura pública reservada aos marginalizados da sociedade. Era o anúncio do trecho final da jornada. Cada senderista carregaria uma tora de madeira, uma referência à via-sacra, em que Jesus carregou sua própria cruz para ser crucificado, e como símbolo do peso que os futuros legendários escolhiam levar dali em diante. As toras estavam empilhadas, cada uma com cerca de um metro de comprimento. A minha não parecia mais pesada que meu mochilão, mas o formato irregular incomodava. Seguimos por uma trilha curta, iluminada por tochas. Às margens do caminho, entre arbustos, legendários liam repetidamente trechos bíblicos do livro de Isaías, no Velho Testamento, que traz profecias sobre a vinda e o sacrifício de Jesus, e de Mateus, no Novo, esses narrando momentos da via-sacra e da crucificação. No fim do percurso, um gramado nos aguardava para um momento que lembrou em muito um culto evangélico, assim como o da fogueira na noite anterior. Uma grande cruz iluminada com LEDs chamava atenção bem no centro do espaço, ladeada por duas cruzes escuras mais baixas –como na Bíblia, em que Cristo foi crucificado entre as cruzes de dois ladrões. À direita, dois legendários tocavam e cantavam louvores, e ao fundo havia cinco tonéis de metal onde toras de madeira ardiam em chamas. Os tonéis eram vazados, através de cada um dava pra ler uma letra, formando o nome JESUS. A mensagem sobre o sacrifício de Cristo foi tomada de comoção, assim como na noite anterior, com muito choro, joelhos no chão, orações e abraços. Logo adiante, em silêncio e formação, paramos num local que lembrava as cercanias dos sítios do primeiro dia e aguardamos. Umas dezenas de metros à frente, um letreiro se acendeu com a palavra LEGENDÁRIOS. Um grupo de homens com uniformes laranja estava também em formação no espaço entre nós e o letreiro, e entoou o grito de guerra do movimento: Entre nós e o letreiro havia um grupamento de legendários também em formação, que começou a gritar em coro algo que não havíamos ouvido até ali. Era o grito de guerra do Legendários. Um deles perguntava, ao que todos os outros respondiam: — Legendários! — Sim, legendário! — O que somos? — Homens inquebrantáveis! — Para que estamos aqui? — Para fazer história! — A serviço de quem? — Jesus! — E o que vamos fazer? — Dar a vida pelos nossos amigos! AHU! AHU! AHU! (“AHU” é sigla para Amor, Honra e Unidade, uma das expressões usadas pelo movimento.) Era a recepção final. O momento em que, oficialmente, passávamos de senderistas a legendários. Agora éramos de fato parte do grupo. Ao vencedor, as batatas (sem talher) De volta ao sítio da primeira noite, encontramos duas longas mesas preparadas para o jantar. Diante de cada lugar: água, refrigerante e, depois, uma sequência simples de comida — batata, pão, linguiça e carne, servidos sem talheres. A batata parecia crua à primeira vista e arrancou olhares desconfiados. "Teríamos que assar nós mesmos?" Mas, depois de três dias de pouquíssima comida de acampamento, a primeira mordida foi avassaladora. Era, de longe, a melhor batata assada na manteiga que já comi. O clima era de confraternização plena. Quase 300 homens batendo papo em subgrupos, sentados ou em pé, durante um churrascão com zero teor alcoólico ao som do legendário que mandava hits do gospel na voz e violão. Parecia natural que daquele meio surgissem futuramente oportunidades de negócios, empregos e ajuda mútua, com tanta identificação envolvida. Cenas do 3º dia em um retiro dos Legendários, em ilustrações do g1 Otávio Camargo, Bruna Azevedo e Thalita Ferraz 169 homens, dois chuveiros e o horizonte Ficamos livres para montar as barracas e tomar banho. Havia dois chuveiros ao ar livre para aqueles 169 participantes –os legendários a serviço tinham chuveiros separados. De banho tomado, entrei na tenda e passei um tempo escrevendo e pensando em como seria a volta daqueles homens para suas famílias no dia seguinte. A atmosfera dava a entender que todos haviam abraçado o movimento por completo, sem ressalvas. Concluíram que o desgaste físico, a privação de sono e até mesmo as humilhações coletivas tinham função totalmente justificada no processo para se tornar um legendário. E concordo que, em alguns aspectos, muitos ali certamente voltariam melhores. Mas ouvi ao longo do retiro diversas lições e falas que reforçam o protagonismo e a liderança masculinas de forma que beirava o inquestionável, por exemplo. A mulher era respeitosamente tratada como parceira que vai seguir e apoiar as decisões do homem, forçada de forma "antinatural" a tomar as rédeas apenas quando o marido está longe de Deus. Ouvi que diversos participantes só entraram no legendários porque as mulheres fizeram a inscrição deles e praticamente os forçaram a ir. Muitas esposas fizeram as malas dos maridos. Também ouvi que uma família não tem como funcionar sem um homem à frente, e que cabe a ele inclusive a chefia espiritual do lar. Esse tipo de pensamento é a raiz de boa parte das críticas que o movimento recebe. O motivo da revolta é que estruturas como essas limitam o espaço da mulher na sociedade, reforçam o machismo e, por tabela, invalidam quem foge à regra, como a comunidade LGBTQIAPN+. Além de outras questões como o racismo religioso, que também ganham força com o discurso. Ainda havia um dia pela frente. A volta à cidade de Salvador ainda tinha algumas surpresas reservadas para mim. * O g1 publica este Diário de um Legendário em quatro partes diárias, entre sábado (26) e terça-feira (29).

FONTE: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2025/07/28/diario-de-um-legendario-dia-3-retiro-masculino-vira-reality-show-com-suor-lama-e-teste-final-de-coragem.ghtml


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