A história do voo TAP 131: como um garoto de 16 anos sequestrou um avião —e virou amigo do piloto anos depois
12/07/2025
(Foto: Reprodução) Em 1980, aproveitando-se das fragilidades de segurança à época, um adolescente invadiu armado a cabine e desviou o voo TAP 131 para Madri. Em entrevista ao g1, um dos reféns, o então copiloto José Correia Guedes, reconstitui o episódio, que ele chama de ‘sequestro à portuguesa’. O caso do piloto que ficou amigo do jovem que sequestrou avião em Portugal nos anos 1980
José Correia Guedes era um jovem piloto português que estava escalado para fazer um voo curto entre Lisboa e o sul do país. Um fim de dia tranquilo, sem uma nuvem no céu, se transformou em pesadelo quando, pouco após a decolagem, um jovem armado entrou na cabine, apontou uma arma para sua cabeça e sequestrou a aeronave.
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Comandante José Correia Guedes, sua mulher e o ex-sequestrador Rui Rodrigues na festa de aniversário de 60 anos deste último
Reprodução/Redes Sociais
Tudo começou no dia 6 de maio de 1980. Guedes era, então, um copiloto iniciante da companhia aérea TAP, Transportes Aéreos Portugueses, que fazia voos nos Boeings 727 da empresa.
Naquele dia, ele se despediu de sua mulher e de sua filha, ainda bebê, para compor um trio na cabine com o comandante Coutinho Ramos e um engenheiro de voo —este último um cargo praticamente extinto nas cabines de voo. Eles estavam escalados para, no fim do dia, voar de Lisboa ao Faro, no sul do país, e voltar à capital.
“É um voo muito curto, de 50 minutos para cada lado, que a gente gostava de fazer, porque dava pouco trabalho e também a possibilidade de pilotar um pouco”, conta Correia Guedes, hoje comandante aposentado, em conversa com o g1.
Ao todo, embarcaram 83 passageiros e sete tripulantes.
O voo TAP 131, no entanto, tinha um passageiro incomum: um adolescente de 16 anos com uma mochila nas costas, que havia comprado uma passagem de primeira classe. Segundo sua mãe contaria depois, esta seria a primeira noite que aquele rapaz dormiria fora de casa na vida.
Acontece que aquele jovem tinha um plano. Cansado das brigas frequentes de seus pais, ele conseguiu juntar algum dinheiro e um punhado de itens em sua mochila, incluindo um rádio e uma revista sobre óvnis (uma de suas paixões na época) – e também a arma do pai, uma pistola Walter 6,35 mm carregada com seis balas.
O caminho de sua casa, no Feijó, na região metropolitana de Lisboa, até a poltrona do avião, não foi difícil de percorrer, já que os controles de bagagem nos aeroportos eram quase inexistentes, se comparados aos de hoje.
“Pouco depois da decolagem, a porta do cockpit se abriu e entrou então este jovem com uma arma na mão”, relembra o comandante Guedes, notando que, ao contrário de hoje, era muito fácil acessar a cabine dos pilotos, já que a porta raramente ficava trancada “e servia mais para reduzir o ruído” do que para garantir a segurança da tripulação.
“Vamos para Madri! Vamos para Madri! Vamos para Madri!”, gritava o adolescente ao trio.
▶️Contexto : diferentemente de hoje, sequestros de avião não eram incomuns nos anos 1970 e 1980, em razão das fragilidades nos controles aeroportuários e nas regulações existentes. Era possível por exemplo visitar a cabine de comando em voo. Tudo mudou a partir após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, quando aviões foram sequestrados por terroristas e jogados contra alvos americanos. Desde então, as cabines passaram a ser protegidas com portas à prova de balas e, durante o voo, com acesso restrito à tripulação. Os controles de bagagem também ficaram mais rigorosos, assim como a identificação dos passageiros.
Arma apontada para a cabeça
A primeira hipótese de Guedes era de que o voo 131 estava sendo sequestrado por um grupo terrorista, com motivações políticas —um evento relativamente comum ao longo dos anos anteriores na Europa. O comandante nota, porém, que, por Portugal ser um país pequeno, os funcionários da TAP sentiam-se relativamente seguros, "porque pensamos que ninguém nos iria querer fazer mal".
A suspeita logo se dissipou, quando Guedes percebeu um sequestrador muito jovem, nervoso e que tremia muito apontando a arma contra a sua cabeça.
“A situação parecia-me mais perigosa, porque um profissional não treme. Um amador treme e pode disparar a qualquer instante.
Ao perceber a gravidade da situação, o trio da cabine evitou contestar o sequestrador, mas discretamente inseriu um código no transponder, chamado de “squawk” no jargão da aviação, que indica à torre de controle que o voo foi sequestrado.
Guedes e o comandante até tentaram desencorajar o jovem, dizendo que não havia combustível suficiente para chegar à capital espanhola, mas ele havia feito seu "dever de casa", nas palavras do copiloto: ele sabia que, por segurança, as aeronaves decolam com mais querosene de aviação do que o necessário para chegar ao destino.
Os passageiros não foram avisados do sequestro: os pilotos disseram que não seria possível pousar em Faro devido ao mau tempo e que, por isso, desviaram para Madri.
Era uma desculpa esfarrapada. Além de ser mais fácil retornar a Lisboa do que se deslocar até a capital espanhola, havia um céu de brigadeiro no sul de Portugal naquele início de noite.
Imagem de arquivo do Boeing 727 da TAP que foi sequestrado na rota entre Lisboa e Faro, em 6 de maio de 1980
Reprodução/Redes Sociais
'Síndrome de Estocolmo'
Conforme o tempo transcorria, uma relativa calma começou a se impor entre os quatro presentes na cabine de comando. O comandante Coutinho percebeu que uma certa cumplicidade estava surgindo entre o sequestrador e o copiloto, que também era o mais jovem dos tripulantes. Notou que Guedes havia sido escolhido como interlocutor e decidiu interferir o mínimo possível no diálogo que se estabelecia entre ambos.
Guedes afirma que começou a se desenvolver uma "síndrome de Estocolmo" entre ele e o sequestrador. A síndrome de Estocolmo é o nome dado à condição em que reféns desenvolvem laços emocionais com os sequestradores.
"No meio disso tudo, alterar o plano de voo, naquele tempo, dava muito trabalho porque não havia computadores. Tudo era feito à mão. Tivemos que fazer os cálculos de combustível, planejar a aproximação e a aterrissagem em Madri", conta Correia Guedes.
Ao ver o movimento na cabine, o sequestrador se compadeceu: “Os senhores desculpem o trabalho que lhes estou a dar”.
Correia Guedes solta uma leve risada ao lembrar do episódio. “Isso é o que eu chamo de um sequestro à portuguesa”, ele define. "Nós somos um povo muito tolerante, muito pacífico."
"Só um português poderia fazer isso, sequestrar um avião e pedir desculpas aos sequestrados."
US$ 20 milhões e um salvo-conduto
Não demorou até o adolescente contar as suas exigências: uma vez em Madri, ele exigiria US$ 20 milhões e um salvo-conduto para chegar até a Suíça para libertar os passageiros.
Assim que pousaram no aeroporto de Barajas, o Boeing 727 foi direcionado a uma área remota da pista e cercado por policiais.
Havia tensão: o sequestro foi finalmente anunciado aos passageiros, e as autoridades foram mobilizadas. O embaixador português na Espanha foi ao local acompanhar a operação, enquanto o então primeiro-ministro de Portugal, Francisco Sá Carneiro, reunia-se com seu gabinete em Lisboa. O país parou, atônito, para acompanhar o caso.
Na cabine do Boeing, o copiloto Guedes assumia a função de aconselhar o jovem sequestrador: "Eu lhe dizia que esses US$ 20 milhões nem sei se existiam no banco em Portugal. E o salvo-conduto eu garanto que não serve para nada, pois quando colocares os pés, seja na Espanha, seja na Suíça, vais ser imediatamente detido".
Foi então que, depois de horas de negociações, nas palavras de Correia Guedes, o sequestrador fez uma primeira concessão. O adolescente aceitou libertar todas as mulheres e crianças que estavam dentro da aeronave.
Os 727 têm uma escada na parte de trás. Ela foi acionada e, imediatamente, uma correria se deu entre os passageiros; no meio de tudo isso, alguns homens também conseguiram escapar em desespero.
Jornal português 'Correio da Manhã' noticia na manchete o sequestro do voo 131 da TAP, em maio de 1980
Reprodução/Redes Sociais
Um choro de arma na mão —e a capitulação
Mais algumas horas de negociação depois e o jovem finalmente capitulou.
"A situação é dramática e um pouco patética”, descreve Guedes, “porque, a partir de determinada altura, ele começou a chorar, de arma na mão esse tempo todo, e eu comecei a chorar também.”
Correia Guedes fez um acordo com o jovem: que ele entregasse as balas que estavam na arma, e ele testemunharia à Corte que sua pistola estava descarregada.
Nenhum dos dois sabia, à altura, que isso não era considerado atenuante perante a Justiça portuguesa.
Guedes, cujo pai era membro da Suprema Corte de Portugal, também prometeu que intercederia junto a ele para que fosse tratado com benevolência, devido à sua pouca idade.
O sequestrador até hesitou em ceder a sexta e última bala, dizendo que tiraria a própria vida, mas foi convencido pelo copiloto. Eles decidiram libertar os passageiros restantes e seguir de volta para Lisboa.
Oficialmente, a aeronave continuava sob sequestro, e foi decidido que eles pediriam às autoridades de Madri que abastecessem a aeronave para que seguissem a um destino desconhecido.
“Os espanhóis ficaram encantados, queriam mais era que saíssemos”, conta Correia Guedes. “E nós não queríamos entregá-lo à Justiça espanhola, pois eles seriam muito mais severos.”
A torre de Barajas só foi informada do fim do sequestro após a decolagem.
Já era alta madrugada quando o avião finalmente pousou em Lisboa. O jovem foi imediatamente detido.
Promessa cumprida
Guedes, antes de dormir, cumpriu uma outra promessa que havia feito ao sequestrador: ligar para a mãe dele e contar o que havia acontecido.
No dia seguinte, ainda com as balas em seu bolso, contou a situação ao pai – e levou uma bronca. Este disse ao filho que ele estava ocultando provas, tornando-se cúmplice do sequestrador, e que devia ir de imediato à delegacia para entregar a munição.
O delegado, perante a situação, começou a rir. Durante a noite, o jovem confessou tudo, e nenhuma acusação foi feita contra Correia Guedes.
Alguns meses se seguiram em que o adolescente ficou detido aguardando um julgamento no qual podia pegar até 20 anos de prisão. Como menor de idade, porém, o Ministério Público de Portugal finalmente concordou em pedir uma pena de três a oito anos de cadeia.
A opinião pública portuguesa pressionava fortemente... pela absolvição do jovem, em uma campanha liderada por seus professores e amigos.
Ao fim da prisão preventiva, o jovem saiu da detenção diretamente em direção à casa de Correia Guedes. Tocou a campainha e pediu desculpas à mulher do copiloto. Deparando-se com um adolescente à sua porta, a mulher ouviu o pedido de perdão, perguntou se o jovem estava com fome e, apesar de zangada, o convidou para jantar. Jantaram os três juntos.
Julgamento
No julgamento, o copiloto, em suas palavras, "passou de testemunha de acusação para testemunha de defesa". Disse ao juiz que era um jovem com muito potencial, que agiu num momento de desespero, e seria uma pena que o colocassem na cadeia.
O sequestrador acabou sendo condenado, mas com a pena suspensa – ou seja, sem ser preso de fato, a não ser que cometesse outro crime.
A reaparição e o convite inesperado
Ao fim, o jovem seguiu com sua vida, formou-se, trabalhou como jornalista, depois no setor comercial de uma rede de TV, e teve uma carreira de sucesso como empresário.
Em 2017, apareceu de surpresa no lançamento do livro "O aviador - histórias de uma vida passada dentro dos aviões da TAP", que José Correia Guedes publicou após se aposentar como comandante —e os dois retomaram o contato.
Ao fazer 60 anos, em 2023, o homem decidiu convidar Guedes e sua mulher para comparecer à festa de aniversário. Até hoje, os dois mantém contato e um carinho mútuo.
Tanto que Correia Guedes, hoje com 78 anos, continua cumprindo uma outra promessa: não revela nem em seu livro, nem em suas redes sociais, nem em entrevistas (inclusive nesta, que concedeu ao g1) o nome daquele jovem sequestrador, apelidado de “Piratinha do Ar” pela imprensa local.
Seu nome foi amplamente divulgado, no entanto. Rui Manuel da Costa Rodrigues nunca mais falou publicamente sobre o sequestro que cometeu na adolescência.
O g1 entrou em contato com Rodrigues, pedindo para que ele contasse a sua versão da história do voo 131. Não houve resposta.
Sequestro do voo TAP 131
Gui Sousa/Editoria de Arte g1
⚠️A reportagem acima é parte de uma série do g1 dedicada à reconstituição de acidentes e incidentes aéreos. Leia a seguir alguns dos textos já publicados:
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